Indicado por uma diretora do R7, Aline Sordili, li com grande surpresa e satisfação o livro de contos da escritora portuguesa Patrícia Madeira.
Sob o título de O Armazem e Outras Estórias, o e-book traz contos curtos, alguns ao extremo da fantasia, outros irônicos. Mas uma das características presentes em todas as páginas é o humor inteligente da autora.
É impossível parar ler, a narrativa chama. A escrita é rápida e suave. Curioso ler palavras ainda com português de Portugal. Ri muito ao deparar-me com “pénis” e outros vocábulos usados por Patrícia. Não sei se interpretei como saudosista ou como uma forma de trazer à tona a genitália masculina em sua forma mais divertida.
Da cabeça da escritora sai de tudo: Em O Armazem – que lembra a passagem que faz Alice, em Alice no País das Maravilhas, a protagonista da história faz uma travessia quase alucinógena em que encontra mulheres devorando pães com formatos de pênis, assim como homens descobrindo as delícias em delicadas guloseimas com formatos de vagina.
Parece pornográfico? Mas não é. Trata-se apenas de mais uma das sagacidades da escritora.
Ela também discorre sobre uma longa conversa, da qual não consegui me separar, e o fim é sensacional. Afinal, poderia, sim, acontecer com qualquer um naquele momento, este é A Confidente.
Certamente a autora escolheu a dedo a sequência de contos disposta no livro. Isso é fundamental para dar sequência ou não à leitura. Portanto, esse é mais um traço positivo da autora.
Como habitual neste blog, nosso interesse aqui não é fazer uma crítica que decifre os pontos positivos e negativos da literariedade da obra, mas mostrar por que é bacana lê-la.
Patrícia Madeira vale ser lida porque é divertida, inteligente, criativa e rápida. Você vai ler e vai indicar a outros. Pode ter certeza. Ela brinca com cenas de disputa estúpida no escritório, com jogos de búzio, a querida Matilde, as idas e vindas de Clara e Clarice e o medo.
Uma cortesia aos homens, O Dia em que Fiz Amizade com o Meu Pénis, é um conto admirável. Zezinho é como a autora chama o pequeno pênis da personagem, e vai além com os apelidos.
“E eu que o intitulava de pequenito, anão, cacetinho, cogumelo, pintinho, coto, mindinho, pauzinho, pechincha ou besuguinho…”, hahaha, muito bom.
Agora é partir para a leitura, prepare-se para boas risadas.
O Armazém e Outras Estórias
E-book de Patrícia Madeira, R$ 26,97
Em 2001 publicou o seu primeiro livro de ficção, «2001, Instantâneos de Sapo», sob a chancela da Oficina do Livro. O seu segundo livro foi lançado em 2003: «Lau Mim» (Temas e Debates). Agora, decidiu apostar num novo formato, o eBook, porque, «além de ser acessível», considera que «os portugueses são muito dados à tecnologia», embora reconheça que falta ainda o hábito de ler livros noutro formato que não em papel. Para Patrícia Madeira, um eBook é um formato ideal que permite «transportar» várias obras num só suporte. E recomenda a versão para iPad, por incluir as ilustrações de João Raposo.
O primeiro conto que dá nome à colectânea, «O Armazém», foi escrito aos 18 anos. Entretanto, reeditou-o várias vezes, à semelhança do que fez com outros, e há três anos decidiu voltar ao projecto.
«O Armazém e Outras Estórias» entrega-se a vários temas, entre eles o amor, o sexo, a solidão, a velhice, a amizade, o fantástico e a morte. Um dos textos é sobre uma banda de freejazz que termina a digressão europeia em Lisboa, os Sax Wizards. O conto «Roy Blue está na cidade» – que revela o que mais se poderá ter, além de fama, para deixar a nossa marca no mundo – está disponível para download gratuito na Leyaonline.
Para a autora, esta colectânea «revela a ansiedade e a insegurança que temos connosco próprios, que jamais ousaremos contar a alguém, e a certeza que estamos sozinhos mesmo quando rodeados pelos nossos mais queridos».
Todas as histórias foram escritas numa perspectiva individual e intimista. Já as ilustrações são um convite à continuação de cada história na cabeça do leitor. Recorrendo a um estilo fotográfico e a uma linguagem despudorada, Patrícia Madeira pratica um exercício quase que de voyeurismo. O leitor vai desfilando por vários equívocos, anseios, fantasias e manias que povoam o quotidiano de personagens anónimos.
Dos 18 contos, destaque para «A confidente», que questiona o que poderá levar um indivíduo com fobia social que viaja numa carruagem do metro a sentir-se seguro para partilhar as suas angústias. Ênfase ainda para «A porca», em que um caso de amor alternativo tem um desfecho inesperado e «O que dizem os búzios», sobre uma vidente que tem a coragem de dizer a verdade que não queremos (ou não estamos preparados para) saber. Incontornável também ler «O dia em que fiz amizade com o meu pénis», sobre um homem que tem que lidar com a verdade clínica de ter um micropénis.
Fica um excerto do conto que deu nome à colectânea:
«Não me lembro muito bem do dia em que entrei no armazém. Sofri uma amnésia total quando lá entrei. Fiquei sem identidade, sem passado…uma mera espectadora com todas as características inerentes a um mero e puro observador. Entrei por uma porta redonda, ao carregar na sua parte lateral esquerda. A porta abriu-se, conduzindo-me facilmente a um túnel na diagonal que me empurrava para o interior. Fui sugada com toda a força. Ao chegar ao fundo do túnel, deparei-me com uma espécie de gruta húmida. Olhei para o tecto: enormes sanguessugas e aranhas colavam-se a este com fervor. À minha frente estava um orifício com um ascensor no interior. Reparei num pequeno mecanismo que accionava o elevador. Carreguei num botão gorduroso que se moldou à pressão do meu dedo indicador direito. O elevador descia enquanto lançava sons infernais. Quando chegou, abriu-se uma porta acinzentada com inúmeras caveiras impressas.»
Patrícia Madeira nasceu em Coimbra. Estudou no Porto Publicidade e Marketing e Gestão de Marcas no ISCTE em Lisboa. Fez teatro e jornalismo universitário, colaborou com um terapeuta de shiatsu num livro sobre terapias orientais, fez rádio e trabalhou como redactora em diversas agências nacionais e multinacionais. Estudou ainda guionismo de ficção. É ainda uma apaixonada por cinema, design, livros, humor, viagens e a ciência da vida milenar indiana.
Actualmente a viver em Lisboa, está a trabalhar em diversos projectos de escrita de ficção, além de outras ideias para contos e romances.
«O Armazém e Outras Estórias» está disponível para compra online na Amazon, LeyaOnline, Kobo, Apple Store, Bertrand, Wook, Gato Sabido, Amazon.br, IBA, Google Books e na Livraria Cultura.
A apresentação do eBook pode ser vista em http://www.youtube.com/watch?v=gvfcHu_s20Y.
Amores inconfessáveis, prevenções contra a morte, amizades com micropénis (sim, leu bem), concursos televisivos, e actores de filmes porno abandonados pela namorada. Uma grande salganhada, não fossem os armazéns espaços privilegiados para encontrar de tudo um pouco. Nem sempre itens de pequena dimensão ocupam a prateleira com maior visibilidade no supermercado. Quem diz supermercado, diz livraria, no que às pequenas histórias, ainda que grandes, diz respeito, e por isso são precisos bicos de pés para alcançar as estantes menos à mão. Para uma pausa nesta relação assimétrica chega-nos “O Armazém e Outras Estórias”, um encontro dos textos de Patrícia Madeira com as ilustrações de João Raposo.
“Comecei por escrever contos antes das longas-metragens, há vários anos. Dois deles estacionei-os e voltei a eles há três anos”, conta a autora. Chegava a hora da colectânea ganhar forma, apesar de coincidir “com um contexto desfavorável, e de em Portugal nunca se apostar neste género um bocadinho desvalorizado.” João Raposo gostou tanto da ideia de ilustrar as histórias que propôs ir além de um par de desenhos. O resultado pode ser conferido no cimo das páginas, entre fundos negros e as primeiras linhas que iluminam meia dúzia de tramas retiradas deste conjunto.
Em 2001 foram os “Instantâneos de Sapo”, pela Oficina do Livro. Em 2003, “Lau Mim”, da Temas & Debates, ou um romance entre o sério e o cómico guiado pelo mundo caótico de Laura Maria, menina-rapaz de “quase dezasseis anos”. É a vez de entrar neste depósito desempoeirado e aberto a todos onde se escondem as ansiedades e inseguranças de cada um de nós, envolvendo solidão, velhice, sexo ou qualquer outro tema fantástico.
Edição de autor em formato eBook estão reunidos 18 contos acompanhados a par e passo pelas imagens, que deixam o desfecho de cada enredo entregue ao destinatário final. “As histórias são muito intimistas; quase um acesso à cabeça dos personagens. A própria ilustração é um exercício de continuar a história na cabeça dos leitores”. Surgem por isso no final de cada conto, para não limitar interpretações.
O número de histórias não aparece por acaso, já que “O Armazém” começou a ser escrito quando Patrícia tinha 18 anos. Aos 41, acumula uma série de actividades. Natural de Coimbra, estudou no Porto Marketing e Publicidade, e Gestão de Marcas no ISCTE, em Lisboa. Fez teatro e jornalismo universitário, colaborou com um terapeuta de Shiatsu sobre Terapias Orientais, fez rádio em estações amadoras e regionais, desenvolveu um programa de música étnica como membro de uma organização não governamental. Trabalhou como redactora em agências nacionais e multinacionais, estudou guionismo de ficção, e hoje trabalha a partir da capital, na área de estratégia e conteúdos de comunicação, além de se dedicar à ficção e de ser terapeuta Ayurveda.
“Roy Blue está na cidade”, o conto mais longo, sobre um músico de jazz que termina a sua digressão em Lisboa, é o grande aperitivo da leitura. O conto está disponível online de forma gratuita, no site da autora (patriciamadeira.com) ou entrando directamente no endereço da leyaonline.com. Para comprar a colectânea, pode aceder a esta mesma plataforma ou efectuar a operação através da Amazon, Apple Store, Kobo, Google Books, entre outras.
A vivência mundana encontra-se nos mais singelos pormenores, nas ações tomadas de forma mais ou menos consciente, em sonhos que transcendem o próprio ato de pensar algo maior que a fértil imaginação. Em “O Armazém e Outras Estórias”, Patrícia Madeira reúne 18 pequenas peças escritas de um puzzle que pode bem ser um misto das nossas vidas, ou o resultado da própria alienação da realidade enquanto unidade insofismável da complicada, mas aliciante, tarefa de existir num mundo que desafia o limite do ser humano.
No fundo, cada uma destas estórias assemelha-se a uma curta-metragem que versa sobre os mais diversos temas, algo que a autora revela como tendo sido das suas formas iniciais de escrita. Numa cadência que desafia propositadamente qualquer lógica, temas como o amor, a solidão, o sexo, a amizade ou a morte são alvo de caricatura, revistos e transformados em textos agridoces que captam por completo a atenção do leitor.
Se, por exemplo, na estória inicial (“O Armazém”) somos levados para um local surreal assente num mar que junta fantasia, desejo e humor, logo a seguir, “A Confidente” fala da solidão que encontra companhia na frieza da ocasional imagem que se repete a si mesma. O desgaste das relações pessoais, (“Amo-vos Muito”), a roleta das paixões ocasionais (“Esta Cidade é Pequena de Mais”), as inevitabilidades e certezas da vida finita (“O Que Dizem os Búzios”), as desventuras de um herói errante (“Roy Blue Está na Cidade”) ou os dilemas da arte da escrita (“Quem Quer Ser Escritor?”) são outros episódios trazidos à vida por Patrícia Madeira, cuja escrita atraente e fascinante torna este e-book numa espécie de copo de água fresca num dia particularmente quente.
Para tornar esta edição ainda mais especial, as ilustrações de João Raposo dão um toque requintado às palavras encantadas da autora de “2001, Instantâneos de Sapo” e “Lau Mim”, que tem agora em “O Armazém e Outras Estórias” o mais recente capítulo de um filme que merece sequela.
“O Armazém e Outras Estórias”, colectânea de 18 contos da autoria de Patrícia Madeira em formato Ebook, com ilustrações de João Raposo, vai ser apresentado 3ª feira, dia 25 de Junho às 19h na Loja Fnac do Centro Comercial Vasco da Gama, em Lisboa, pelo stand-up comedian Pedro Tochas. A autora conta-nos a sua história e a forma como começou a escrever estes contos…
“O Armazém e Outras Estórias”, colectânea de contos ilustrados, que lanço agora, começou sem começar. Eu explico. Quando comecei a escrever, aos 15 anos, iniciei-me pelas narrativas de curta metragem. Pequenas peças de teatro, poemas e contos. Os pequenos formatos sempre me deslumbraram pela brevidade mas também pela intensidade que conseguem transmitir num tempo tão condensado. Recordo-me, por exemplo, de ler os contos de Tchekhov e ficar fascinada pelos pormenores que cada pequena história continha, os cheiros, as cores, os pensamentos dos protagonistas, as impressões e tudo num momento tão fugaz. Essa inspiração materializou-se, bem mais tarde, no conto “O que dizem os búzios”. Depois de Anton Tchekhov, apaixonei-me pelos surrealistas, sobretudo por Boris Vian, ponteados de humor negro e sequências aleatórias e absurdas. Foi por essa altura que comecei esta colectânea (mesmo sem saber que a estava a originar). O primeiro conto, que dá nome à Colecção, “O Armazém”, escrevi-o com 18 anos. Nem mais nem menos. 18 anos. Descansem, no entanto, os mais puristas. O conto foi editado e reeditado vezes sem conta, à medida que fui aprimorando a minha escrita. Este conto abre “a matar”, como alguns leitores definiram. Não foi propositado, foi despropositado. Na verdade, este conto tem que ver com uma energia pura e uma imaginação à solta de uma apaixonada por ficção, humor negro e puro non sense, uma combinação que ainda hoje me fascina. Não entrarei em pormenores sobre a história, pois neste conto, como em quase todos os outros, trabalhei o factor surpresa e não há nada pior do que alguém nos estragar aquilo que queremos saber mas que queremos ser nós próprios a descobrir. O que vos posso dizer é que é despropositado, sim, e que vos vai levar a um Armazém que não existe na vida real. Bom, pelo menos que eu saiba. Se algum de vós, souber de sítios reais assim, por favor contacte-me. Gostaria muito de conhecer esses lugares. Sugiro que entrem neste Armazém com uma atitude aberta, de observador, pois foi exactamente essa a atitude que imprimi na personagem principal. Mas voltando ao início, o tal que não era um começo propriamente dito. Logo a seguir, escrevi “Os cabelos ruivos”, também reeditado, naturalmente – ou remasterizado, como costumo parodiar. Esta história também cruza a realidade com a ficção, mas de uma forma menos assumida, pelas mãos de uma personagem que é uma espécie de cowboy solitário, que conduz um Mercedes preto antigo pelas estradas fora até que, um dia, uma dessas viagens sem rumo lhe faz mudar a rota. Provavelmente estão a pensar que todos os outros contos, mais 16, viriam numa lógica cronológica – eu também, confesso – mas não, tal não aconteceu. Digamos que “armazenei” estes e outros contos que fui escrevendo e que não estão nesta colectânea. A seguir dediquei-me a formatos mais longos, desde argumentos até romances, alguns de vós provavelmente terão lido “2001, Instantâneos de Sapo” e “Lau Mim”. Talvez. Ou talvez não. O que é essencial para a nossa história de hoje é que estes contos ficaram “armazenados” até voltar a apaixonar-me novamente pelo género, paixão assolapada que devo muito aos escritores norte-americanos Raymond Carver e Flannery O’Connor. Para quem não conhece, recomendo vivamente. O frenesim de voltar aos contos começou a formar-se ao ponto de se tornar uma obsessão. Precisava de os escrever. Dediquei algumas das noites e dias mais divertidos da minha vida a escrever o que vão ler nesta colectânea. A meio do processo, pensei que seria interessante ilustrá-los. A impressão causada pelo livro de Tim Burton “A Morte Melancólica do Rapaz Ostra & Outras Histórias” perdurava na minha mente fotográfica. Convidei um ilustrador cujo trabalho admiro muito, o João Raposo, e ele alinhou, com resultados que, sinceramente, excederam as minhas expectativas. Em relação aos outros dois contos de que vos falei anteriormente, escritos nos meus primeiros anos de vida adulta, há um salto. Um grande salto, diria mesmo. Não falo obviamente em termos de qualidade, deixo aos críticos tal julgamento, mas de um mergulho na realidade. Interessaram-me as pessoas reais, as pessoas anónimas (hão-de reparar que muitas das personagens apenas são tratadas pelas iniciais), pessoas com as quais viajamos no metro, que são nossas vizinhas e que poderiam ser intituladas “pessoas normais”. Mas afinal o que são “pessoas normais”? Foi o que tentei responder nos restantes 16 contos que vão encontrar nesta colectânea. Serão assim tão normais? Em alguns, inspirados em casos reais, e provavelmente aqueles que vos parecerão mais absurdos, quis explorar situações familiares, ordinárias, mas que, por algum motivo, se tornam inusitadas e nos obrigam a olhar para os assuntos sob uma perspectiva diferente. O que pensamos quando viajamos com pessoas a invadir os nossos espaços vitais? O que sentimos quando uma vizinha do lado é descoberta na sua casa falecida há dois anos e era “tão boa pessoa” e tinha uma família numerosa que a amava mas ninguém se deu ao cuidado sequer de saber dela? O que é que acontece quando um vidente nos diz realmente a verdade, aquela que passamos a vida a tentar evitar? O que nos motiva a amar, a juntarmo-nos e a separarmo-nos de alguém? O que fazemos quando não nos sentimos próximos de ninguém, mesmo os nossos mais queridos? O que nos faz ser íntimos com alguém? O sexo, a química, o amor, a curiosidade, a empatia, ou somente o cansaço de se estar só? O que é mais perturbador, o medo ou a sugestão do medo? O que nos acontece quando a pessoa que mais amamos nos deixa? Conseguiremos voltar a ser o que éramos? Estas questões existenciais persistem ao longo da colectânea, mesclando o real e a ficção, até ao apogeu de um concurso de televisão que tem tudo menos de “realidade”. Mas não vos quero estragar a surpresa. Leiam. Exercitem a vossa faceta de voyeurs. Nous sommes embarqués...
Patrícia Madeira
Os 15 anos não são iguais para toda a gente. Ainda se lembra de como foram os seus? Pois então esqueça. Os 15 anos descritos em “Lau Mim” pouco têm que ver com esses. Para Laura, que diz ser uma rapariga com “quase 16 anos”, a vida não está a ser fácil. Se as mudanças do corpo a incomodam e a fazem passar horas ao espelho, as atitudes e manias de alguns amigos levam-na ao desespero. Isto sem contar com o ódio incontrolável à Barbie e ao Ken: “Assassinei-os com o requinte de uma verdadeira psicopata, arrancando a cabeleira loira da Barbie às mãos-cheias e rebentando com tesouradas, pausadas e constantes, o capachinho do Ken. Coloquei depois os seus despojos plásticos numa bacia com água colorida com tinta vermelha. A seguir, fiquei literalmente a olhar para o boneco com a sensação de missão cumprida” (pág. 34).
É este o tom geral da narrativa de Patrícia Madeira, que numa espécie de diário desvenda com verosimilhança a personalidade de Laura, uma rapariga portuguesa de classe média-alta que recusa considerar-se uma adolescente típica. Os pensamentos e vivências de Laura divertem e chocam quem os lê. Pelo que, e apesar de os 15 anos não serem iguais para todos, se sugere que quem leia este livro tenha, pelo menos, uma idade superior aos ditos. Especificando com uma citação suave: “O Presidente da República, por exemplo. É difícil vê-lo todo retorcido numa sanita com uma diarreia monumental. Ou a Primeira-Dama a tirar catotas do nariz e a colá-las depois na saia Chanel para segurar a bainha. Ou o Sumo-Pontífice a coçar os tomates” (pág. 41). Estará o leitor a ver a ideia? Esperemos que sim quanto à sugestão de idade. E que não relativamente ao resto.
A autora nasceu em Coimbra, em 1971, e este é o seu segundo livro de ficção, o primeiro teve por título “2001, Instantâneos de Sapo” (Oficina do Livro). Aprendeu japonês, participou numa obra sobre terapias orientais e actualmente colabora com a revista “Design & Arquitectura”. Estudou no Porto, mas vive em Lisboa.
O título “Lau Mim” corresponde a uma frase de Laura, dita quando ainda era pequena e não sabia utilizar o “eu”. Sem querer desvendar a circunstância em que a protagonista a profere, diga-se apenas que foi para assumir a culpa de uma grande tolice. Um episódio da história familiar que Laura adora que a mãe lhe repita infinitas vezes. A par do “colo” que continua a exigir da família, Laura encontra-se a braços com as diferenças entre desejo e amor. E embora desconhecendo que tal dilema não se resolve aos 15 anos de ninguém, algo se acalma em Laura quando encontra um namorado com nome de gato: Gaspar.
“Lau Mim” tem ritmo, graça e verdade. Dá a conhecer bastante do que passa pela cabeça e pelo corpo de quem está na adolescência. Vodka, charros, pilas e dúvidas entram no livro com naturalidade. Sem sermão.
É exactamente sem sermão, mas com atenção, que o leitor “não adolescente” deve olhar para “Lau Mim”. E se acaso se sentir tentado a contar os seus 15 anos ao adolescente mais próximo, prepare-se para ser olhado como a mais bizarra das jurássicas criaturas…
NUM MINUTO
Patrícia Madeira começou a escrever por volta dos 15 anos. Ia lendo os livros da irmã mais velha até que um dia descobriu um do poeta Mário de Sá-Carneiro e apaixonou-se definitivamente pela escrita, apesar de nunca ter decidido querer ser escritora. Hoje, já com o segundo livro de ficção nas bancas, ainda não se considera uma escritora e sabe que tem muito para aprender. Talvez por isso diga que não quer ficar vinculada a um estilo e os projectos que tem na calha passem também por uma curta-metragem e uma escrita mais virada para o guionismo, para além de um livro de contos.
Depois de ter frequentado, no Porto, o curso de Línguas e Literaturas Modernas, Patrícia Madeira chegou à conclusão que o seu gosto pela literatura não passa pelas figuras de estilo com que lhe ensinavam a perceber um livro. Por isso, resolveu estudar Publicidade e Marketing, área na qual trabalha como redactora. Lau Mim, o seu mais recente livro, é sobre a adolescência, mas não para adolescentes, porque, como diz, rir dos problemas enquanto se está a passar por eles é complicado.
AS PERGUNTAS XIS
“Faz-me feliz amar e ser amada”
O que a faz feliz?
Amar e ser amada. Mas também coisas muito simples como jantar fora, ver um bom filme, dar um passeio na praia, brincar com cães.
Qual é a sua primeira recordação?
Quando me disfarcei de palhaço com seis anos, num carnaval.
Na vida, luta por quê?
Por ideais e por valores.
Era capaz de dar a vida por uma causa?
Depende da causa. Tinha de ser muito forte.
Já não há heróis?
Há heróis e heroínas.
Quem a marcou mais ao longo da vida?
A minha mãe e alguns escritores e realizadores de cinema.
Se fosse mágica mudava o quê em si?
Tornava-me mais bem disposta, sobretudo de manhã.
E nos outros?
Dava uma estrutura mais forte às pessoas em termos de valores. As pessoas perderam os ideais.
Apetece-lhe desistir quando…
Quando me chateiam! Não tenho muita paciência!
Sente-se realizada com…
Com os meus projectos e vê-los reconhecidos como, por exemplo, lançar um livro.
Ser amigo é…
Poder telefonar às três da manhã e ter alguém do outro lado que atende.
Qual a sua música preferida?
Se calhar La Mer, Prelude à L’ Après-Midi d’un Faune do Debussy.
O que faz quando não faz nada?
Nada. Tento nem pensar.
Finais de milénio – quer o coloquemos em 2000 ou 2001 – trazem sempre, ao lado da mensagem optimista que se costuma traduzir no estafado cliché do “alvorecer de uma nova era”, presságios de catástrofe, de incidências de desgraça e do aparecimento de algo de indesejável. Como foi o caso, afinal não verificado, do “bug” informático do ano 2000 que iria parar o mundo. O mesmo se diga de quando surge, no horizonte, o fim de mais 100 anos de vida e evolução humanas. Como nota o historiador Hillel Schwartz no seu livro “Finais de Século, lenda, mito e história de 990 ao ano 2000” (Divulgação Cultural, 1992): “Os finais do século são conclusões tão antecipadas que, quando passam, olhamos para trás e para eles com tristeza e alívio: tristeza pelos momentos de inquietude e pelos sonhos momentaneamente libertos; alívio porque os apocalipses (os desastres e as revelações) foram, afinal, menores e acessíveis”.
Pedro Sapo e os seus amigos, uma juventude sem problemas, festejam a passagem do ano de 2000 para 2001 numa casa com piscina perto de Lisboa, sem Anticristo à vista numa data carregada de emoção. Pedro (Sapo é alcunha) conserva hábitos das modas antigas. Cinco minutos antes das doze badaladas telefona aos pais, à irmã, ao cunhado e aos sobrinhos a desejar “feliz ano novo!”. Está, confessa, a ficar sentimentalóide. Tem 28 anos e mede 1 metro e 95, altura de jogador de basquetebol. Possui gravador de chamadas e um aquário com 10 peixes vermelhos e um preto. As raparigas procuram-no por razões físicas e ele dá-lhes metafísica (Pedro é professor de semiótica). Elas exageram nos seus transportes, lembrando ao assediado as chamadas de valor acrescentado género “0641 Me Liga Vai”. Sapo sobrevive, o pai parece um intelectual dos anos 60 e até fuma cachimbo. O rapaz com alcunha de batráquio balança entre Marta e Sónia. É um indeciso, talvez goste das duas. O fim do ano, com a malta na piscina aquecida, terminou em glória. Pensavam mesmo que nem “Marés Vivas” (a famigerada série televisiva “Baywatch”) iria acabar. Na realidade não vai acontecer assim, a produção já fechou a torneira. Mas podem sempre aparecer por aí, é fatal como o destino, episódios antigos.
Mas o mais interessante não é o fim do ano. O que cativa mais é precisamente o que acontece antes: as polaroids da vida frenética e desestabilizada de Pedro. Mesmo quando pensa em afundar-se finalmente num sofá e não pensar em mais nada, acontece sempre qualquer coisa.
Patrícia Madeira tem um modo divertido de escrever, onde mistura humor, malícia e cumplicidade. “2001, Instantâneos de Sapo” é a sua estreia na ficção. Ela sabe acompanhar as aventuras-desventuras de Pedro e desenha para lá de um grupo, intolerável como quase todos os grupos, figuras que surpreendem pela autenticidade e pela rapidez com que são rubricadas. Mas não há só desenho caprichoso de personagens. Há também neste livro nunca tão optimista como deixa transparecer, um sentido muito agudo de época. Veja-se a viagem e a estada em Nova Iorque no meio de batalhões de anti-fumadores e o remate de um engarrafamento de trânsito que torna o ar irrespirável na metrópole anti-tabagística. Repare-se ainda como, através de uma personagem, se pode dar uma época, talvez mesmo uma sociedade inteira. É o retrato do pai de Pedro: “Desde a reforma que ele não conhece outro divertimento senão a televisão. Vê até ao final da emissão. Faz um zap contínuo entre os canais. Vê o noticiário da noite inúmeras vezes em inúmeros canais. O meu pai criou raízes no sofá, quase não sai de cima dele e a barriga não perdoa. Crise dos 60. A minha mãe já inventou reuniões de beneficiência, só para não se dar conta que anda carente e irritadiça. Apetece-lhe partir a televisão – quando não passam telenovelas -, chama-lhe a amante do meu pai. Se, realmente, assim fosse, a televisão tinha que se contentar com uma relação de voyeurismo por parte do meu pai” (pág. 13).
Que fará Pedro com a idade do pai? Estiolar diante da televisão, nunca. A ideia é fartar-se de viajar. Mas, sinais de perigo, há viagens e viagens. Partiu numa excursão em que, no meio de outros rapazes e raparigas, ele ia “solto”. Para as grandes capitais da antiga Áustria-Hungria: Viena, Praga e Budapeste. Só que, à noite, todos os seus companheiros davam sinais de cansaço e recolhiam aos quartos do hotel muito cedo, embora depois Pedro ouvisse lá dentro sinais óbvios de actividade. Não querendo tornar-se “écouteur”, passeou sozinho à noite, conheceu locais e pessoas. Começou em má onda mas acabou a ganhar cultura. Mas os tais instantâneos do Sapo são muito marcados por estas crises que terminam em bem-estar ainda que fugaz. Ou por bem-estar que termina em crise: Pedro tomava banho de espuma, essência de eucalipto, música ambiente e tudo, quando a campainha tocou, quando não é a porta, é o telefone. A fantasia insinuou-lhe que podia ser Sónia. A realidade revelou-lhe uma senhora, testemunha de Jeová, e a parte dura começou aí.
John Carey escreveu no seu prefácio de “Pure Pleasure” (Penguin Books, 2000): “Ponha o seu livro de lado e ligue a TV e a sensação de descontracção é imediata. Isso deve-se a grande parte do seu espírito ter parado de trabalhar”. Numa primeira leitura, “2001, Instantâneos de Sapo” é concebido para ser divertido, estamos num mundo sem complexos de culpa mas o relógio tic-tac do pensamento e até mesmo da dúvida não param por causa disso. Pedro, Marta, Sónia, o bando todo, vivem num universo onde o dinheiro não é problema, a liberdade foi conquistada pelos papás, os consumos estão aí. Onde também dá a impressão que basta premir o botão de “rewind” na realidade (como nos vídeo-gravadores) para baralhar afectos e tornar a dar, “pode fazer-se um pouco de tudo e a qualquer hora” menos ao domingo, há estímulos, vibrações, “fast fuck”, desculpem o meu francês, vodka maçã e tolerância infinita. Mas arranhe-se esta superfície e pode surgir outra luz: revejam-se os instantâneos de D. Adosinda e o episódio da Ervanária. Afinal, no meio de tanta euforia, há gente a despedir-se. Mas dir-se-ia que o mundo de Pedro está sempre pronto para a reconstrução, quando a “pet-shop-woman”, uma quarentona lindíssima com quem ele gostaria de dar uma curva, lhe estende o cartão com o número do telemóvel, “o senhor pode querer comprar mais iguanas”, a vida volta a sorrir. Se se lê essa coisa desactualizada que são os livros porque nos dão prazer, se é esse o critério, então “2001, Instantâneos de Sapo” é o pecado óbvio que responde à chamada.
PATRÍCIA MADEIRA A GANHAR CORPO
Dizer que nasceu uma nova escritora é o mais comum dos disparates dos clichés. Ao seu lado no rol de tonterias está também o sublinhar que se trata de um “jovem” e de sexo feminino. Porém, são precisamente essas as marcas com que Patrícia Madeira se tem debatido neste arranque da sua carreira literária. Ela não gosta. Talvez se fosse “tia” e tivesse uma escrita mais popular, os clichés fossem outros. Aos 29 anos, acaba de editar o seu primeiro livro , 2001 – Instantâneos de Sapo, um retrato de um rapaz dos nossos dias, solteiro e disponível. Um livro pop, com sexo, universos noctívagos e escrito na pessoa masculina. E é também um livro com música. Sem CD incorporado, mas sempre com banda sonora bem assinalada, onde cabem Ella Fitzgerald, Chris Isaak e Morphine.
Posto isto, poder-se-á pensar em escrita para jovens. Pode-se, sim, senhor, mas é a própria escritora que tem consciência que essa interpretação é redutora. Ao primeiro encontro com a sua escrita, qualquer leitor unissexo depara com um estilo seguro, casual e não necessariamente geracional. O herói da ficção é um jovem urbano, professor de Semiótica e mulherengo com propensão misógina. Muitos rapazes de cidades como o Porto ou Lisboa são capazes de se identificar com o estilo de vida deste Sapo. Curiosamente, também a escritora remete para o seu universo pessoal a inspiração deste primeiro livro, ela que nasceu em Coimbra, viveu no Porto e é agora alfacinha estabelecida.
Apesar de estar sempre a escrever – pequenos contos e outras coisas – no seu caderninho, nos tempos não livres, Patrícia Madeira ganha a vida em publicidade. É criativa de uma agência multinacional. É óbvio que, se pudesse, apenas escrevia. Escrevia e ia ao cinema, a sua outra paixão. Ao mesmo tempo, garante a pés juntos que a publicitária tem a mesma personalidade que a escritora, apesar de ter uma relação amor-ódio com a publicidade. Com a literatura desfaz-se mesmo em amores. Por isso, sonha em editar mais, apesar de estar bem consciente que não edita para ganhar dinheiro.
Escreve para ser feliz. Talvez por isso tenha ficado também feliz quando foi “tentada” por duas editoras. Acabou por escolher a Oficina do Livro, já a pensar na agressividade comercial desta. Agora, está a receber um bom feedback dos leitores e a saborear o seu livro pronto e nas bancas. “Quando entro numa livraria e vejo nas prateleiras o meu livro a sensação é muito boa, mas ainda foi melhor quando soube que iria ter um editor a apostar nesse projecto, neste caso dois. Foi muito interessante não estar a escrever para a gaveta”. Na gaveta ficam apenas os textos da classe Diário de adolescente e letras para eventuais canções de Marco Paulo, juntamente com Nick Cave, uma das “pancadas” de Patrícia.
Para trás estão os seus tempos de adolescente em Coimbra, onde um curso de actriz no CITAC e um outro de escrita criativa a marcaram até hoje. Nesse curso de escrita criativa chegou a escrever uma peça de teatro, coisa que quer repetir um dia destes. De preferência, mais a sério. Mas se lhe pedirmos para definir a sua escrita, responde: “É só urbana. Urbana e unissexo. Contudo, têm-me dito que o livro tem muitas expressões populares e de aldeia.” Antes de chegar aos trinta anos, Patrícia Madeira continua sem saber se tem uma vocação definida. Por isso, escreve. E diz que escreve por instinto e que está preparada para todos os tipos de reacções. “Tenho de gerir as opiniões negativas. Até já disseram que era um livro descartável. É bom que haja opiniões negativas, significa que as coisas estão a ganhar corpo”, refere. Falem dela. Bem ou mal, mas falem. Só não lhe peçam é para assinar o livro. É alérgica a autógrafos.
Onde é que vai estar daqui a cinco anos?
A escrever e com mais dois livros publicados. Sem Nobel.
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